Cançonetas Geográficas
O Abade de Baçal recolheu ao longo da sua vida inúmeros testemunhos do poder criativo do povo como estas cançonetas que ora partilhamos com todos, assim como o cancioneiro bragançano.
Adeus, adeus, ó Freixeda
Três pontos de admiração:
O carrasco e a igreja
A pedrinha do pontão.
Adeus, adeus, ó Freixeda
Adeus, ó pedra redonda,
Onde se sentam as moças
Para ver passar a ronda.
Adeus lugar da Gouveia
Estás no alto, dá-te o vento:
Tens rapazes como cravos,
Raparigas que atormentam.
Adeus ó lugar das Múrias
Rodeado de oliveiras;
Tens rapazes como cravos
Raparigas como roseiras.
Adeus, adeus, ó Mirandela,
És bonita, tens que dar:
Raparigas ao convento,
Rapazes a namorar.
Mirandela, Mirandela,
Mira-a Bem e foge dela;
Quem Mirandela mirou
Em Mirandela ficou.
Dizem que a ponte de Mirandela
Tem dezassete olhais,
Ainda lhos contei ontem à noite,
São dezasseis, nada mais.
A ponte de Mirandela
Tem vinte e cinco olhais;
Contei-os ontem à noite
São dezoito, nada mais.
Nossa Senhora do Amparo,
Senhora de Mirandela;
Hei-de pôr no teu altar
Velas de cera amarela.
No dia que eu casar,
Senhora de Mirandela,
Hei-de Pôr no teu altar
Velas de cera amarela
Meu coração anda a lanço
Na praça de Mirandela
Já não há quem lance nele,
Lança tu, minha donzela.
Adeus, adeus, ó lugar das Múrias,
Ó longe pareces uma vila,
Tens um cravo na entrada
E uma rosa na saída.
Adeus, ó lugar das Múrias,
Ó lado tens um ribeiro;
Ó que jardim tão belo,
Falta-te um jardineiro.
Adeus ó lugar das Múrias,
Quem te pôs o nome errou:
Estou tão afeitinho
Já de cá me não vou.
Adeus, ó lugar do Nabo,
Ó cimo tens um Lodão;
No meio está uma rosa,
Prenda do meu coração.
Adeus, adeus, ó Navalho
Semeado davas pão;
Já me deste alegria.
Agora dás-me paixão.
Paradela, Paradela,
Não há terra como ela
Andam a engordar as vacas
Para outros comerem a vitela.
Avidagos deu um tombo;
Ó Palorca tem-te lá;
Milhais é um brinquinho,
Sempre o foi e será.
Suçães é vale de rosas,
Bem se lhe pode chamar:
As rosas p´ra botica
A Suçães se vão buscar.
Cancioneiro Popular Bragançano
O - A – é a primeira letra,
Que se estuda no Abcê;
Quem ama por tu se trata
E não por vossemecê.
Anda cá, meu bem perdido,
Que bem perdido andais;
Já tens perdido muito,
Não quero que perdas mais.
Acipreste, verde triste,
Quando hás-de ser alegre?
Esse seu corpinho, menina,
Quando me há-de ser entregue?
Esses teus lindos cabelos,
Soltos, entregues ao vento,
A todos dão alívio,
Só a mim tanto tormento.
Hei-de ir para o deserto,
Hei-de escrever na ermida;
Quero saber quem te logra,
Amor da minha vida.
Quem me dera ser bruxa,
Feiticeira nesta hora;
Quem me dera adivinhar,
Onde o meu amor está agora!
No tempo que eu te amei
Melhor fora estar doente;
Tempo tão mal empregado
E dado de tão boa mente!
António, lindo António!
Amor do meu coração!
Não me quiseste amar,
Deixaste-me sem razão.
Ó Rosa, tu estás queixosa,
Acho que não tens razão;
Já te achei desfolhada
Não te tirei o botão.
Fui cortar uma rosa,
Picou-me c´os espinhos:
É bem tolo, é bem parvo,
Quem com rosas tem brinquinhos.
A flor de rosmaninho
É a primeira do ano;
Também vós, minha menina,
Sois a primeira que eu amo.
Cheira o cravo, cheira a rosa
Cheira a flor do rosmaninho;
Só tu me cheiras a cravo,
Meu delicado amorzinho.
Algum dia nesta rua
Tinha eu com quem falar,
Agora passo por ela
Como o pardal a voar.
Ó sapato d´uma sola
Logo se lhe rompe a biqueira;
Acautele-se, ó menina
Não caia na ratoeira.
No alto daquela serra,
Ouvi cantar e chorei,
Pela minha mocidade,
Que tão mal a empreguei.
Ó quem fora como o sol,
Que entra pela janela;
Que te fora ver à cama,
Meu ramo de primavera.
Das fragas nascem as águas,
Das águas brotam as fontes;
As águas curam as mágoas:
São águas de Trás-os-Montes.
Meu amor, vinho, vinho,
Que eu a água não a sei beber;
A água tem samaçugas
E eu tenho medo de morrer.
Folclore
Folclore é um género de cultura de origem popular, constituído pelos costumes, lendas, tradições e festas populares transmitidos por imitação e via oral de geração em geração.
O termo folclore (folklore) aparece pela primeira vez cunhado por Ambrose Merton - pseudónimo de William John Thoms - em uma carta endereçada à revista The Athenaeum, de Londres, onde os vocábulos da língua inglesa folk e lore (povo e saber) foram unidos, passando a ter o significado de saber tradicional de um povo. Esse termo passou a ser utilizado então para se referir às tradições, costumes e superstições das classes populares. Posteriormente, o termo passa a designar toda a cultura nascida principalmente nessas classes, dando ao folclore o status de história não escrita de um povo.
À medida que a ciência e a tecnologia se desenvolveram, todas essas tradições passaram a ser consideradas frutos da ignorância popular. Entretanto, o estudo do folclore é fundamental de modo a caracterizar a formação cultural de um povo e seu passado, além de detectar a cultura popular vigente, pois o fato folclórico é influenciado por sua época.
No século XIX, a pesquisa folclórica se espalha por toda a Europa, com a consciencialização de que a cultura popular poderia desaparecer devido ao modo de vida urbano. O folclore passa então a ser usado como principal elemento nas obras artísticas, despertando o sentimento nacionalista dos povos.
Fazem parte do folclore as seguintes áreas:
- Cancioneiros Populares
- Edições
- Feiras
- Festas e Romarias
- Gastronomia e Vinhos
- Instrumentos musicais
- Jogos Populares Tradicionais
- Lendas
- Literatura Popular
- Medicina Popular
- Museus Etnográficos
- Música Popular Tradicional
- Pessoas
- Provérbios
- Romanceiro
- Turismo
- Terras de Portugal
- Usos e Costumes
Os grupos que se podem enquadrar no folclore português são os seguintes:
- Ranchos Folclóricos;
- Grupos de Música Popular;
- Concertinas;
- Gaiteiros;
- Acordeonistas;
- Zé-pereiras;
- Gigantones, Cabeçudos e Mascarados;
- Grupos de Cantares;
- Grupos de Cantadores ao Desafio.
Na música, caracteriza-se pela simplicidade, monotonia e lentidão. Sua origem pode estar ligada a uma música popular cujo autor foi esquecido ou pode ter sido criada espontaneamente pelo povo. Observa-se a música folclórica sobretudo em brincadeiras infantis, cantos religiosos, ritos, danças e festas.
São exemplos:
- cantigas de roda
- acalantos;
- modinhas;
- cantigas de trabalho;
- serenatas;
- cantos de velório;
- cantos de cemitério.
Rancho
No site do Rancho (http://rfolstiago.no.sapo.pt) encontramos os seguintes dados:
Foi em 26 de Fevereiro de 1963, que o Rancho F. S.Tiago de Mirandela começou a dar os seus primeiros passos. Com o aparecimento de uma marcha de Carnaval, com o nome de "Marcha de S.Tiago", alusiva ao nome do lugar (rua) em que foi organizada e pela vontade de alguns Mirandelenses, foi esta a semente que começou a desenvolver o folclore da região da terra quente em Trás-os-Montes.
Hoje formado em Associação Cultural desde 10/11/1987, com sua publicação no Diário da República, III Série, em 5/12/1987. Em todos estes anos este grupo tem como sua preocupação dar às suas gentes, o despertar nas pessoas do meio rural a consciência viva do valor do seu saber cantando as ancestrais "melodias" e vivências que deram um sentido sadio às suas vidas. Nas cegadas, malhadas, vindimas e apanhas da azeitona, estudar o passado é manter vivo os usos e costumes do nosso povo. É nesta perspectiva que o Rancho Folclórico S.Tiago quer assimilar a verdadeira cultura, principalmente no que diz respeito às danças e cantares do nosso povo , que eram cantadas e bailadas no fim de cada tarefa agrícola.
O Rancho Folclórico S.Tiago de Mirandela teve 3 fases distintas, se considerarmos as datas mais importantes na sua existência. A primeira é aquela que verdadeiramente lhe deu origem e acontece em 1963. Neste ano, no dia 26 de Fevereiro realiza-se a “MARCHA DE S. TIAGO“ por iniciativa de Augusto C. Carvalho, Dona Fernanda Marujo e Dona Isaura Rego. Esta marcha de Carnaval tinha aquele nome derivado ao local onde ela foi organizada (Rua de S. Tiago), e era o resultado do trabalho de alguns Mirandelenses, entre os quais os já referidos. Daqui parte o entusiasmo e a vontade anímica de não mais deixar de cantar e dançar ao gosto do povo, entre os populares, vestindo bem à sua moda e recordando canções de outros tempos. Os anos passaram-se, as actuações iam acontecendo, a adesão do público era uma realidade e o grupo ia sobrevivendo com os momentos melhores ou até menos bons, como acontece na vida de qualquer ser ou instituição.
É a 3ª fase que transforma o Rancho Folclórico numa instituição organizada com estatutos próprios. Foi em 10 de Novembro de 1987 que constituiu em Associação Cultural com a publicação oficial no Diário da República, III Série, de 5 de Dezembro de 1987.
Até hoje o trabalho desenvolvido tornou-se imprescindível e um marco cultural da cidade de Mirandela, o seu concelho e região, com uma expansão não só em nº de elementos, como no traje, no cancioneiro recolhido e noutros aspectos etnográficos interessantes como falamos mais adiante.
É de registar as facetas múltiplas que a Associação Cultural tem desempenhado após a sua oficialização. É que, se inicialmente a sua base e origem foi o Rancho Folclórico, surgem também o Grupo de Gigantones e dos Bombos que animam não só as Festas de Nª Sra. Do Amparo mas também outras solicitações do exterior do Concelho.
Tem também um lindo e agradável Grupo de cavaquinhos que interpreta músicas tradicionais, regionais e nacionais, com agradável apreciação e uma forma cativante para o público em geral. Tendo também o seu grupo mais recente (fundado em 1997) o Grupo de Samba “Princesa do Tua“ que animam os Carnavais realizados em Mirandela bem como a “ MARCHA LUMINOSA “ das festas da Nª Sra. do Amparo.
Actualmente a Associação Cultural do Rancho Folclórico S.Tiago de Mirandela conta, pelo menos, com 4 subdivisões ou secções distintas, mas com um elo comum.
Todas vão de encontro à cultura popular nas suas componentes recreativas, nomeadamente musicais, da canção, do traje, ou seja, todas estão perfeitamenteintegradas na etnografia de um povo da Terra Quente: Mirandela.
São elas:
- O Rancho Folclórico
- Grupo de Cavaquinhos
- Zés Pereiras com bombos e gigantones
- Escola de samba
Cancioneiro desde 1963 até 2000
- Marcha do rancho
- Fado transmontano
- Deitei meus olhos ao rio
- Eu tenho uma saia velhinha
- O verde-gaio
- O regadinho
- Tim tim o-la-ré tim tim
- Tirana
- Vira rodado
- As violetas
- Baile cruzado
- Liberdade
- O loureiro
- Pelo rio abaixo
- Se eu fosse rato
- Fado corrido
- Ó Idália
- Chula batida
- Olha o velho
- Papagaio olha a rola
- A ladeira do castelo
- Vira do Cruzado
- Anda de roda
- Chora a videira
- A dobadeira
- As ceifeiras
- Os olhos da Marianita
O Traje
O traje outrora usado nas ocasiões de trabalho nesta região do Nordeste Transmontano era um traje simples, assim os fatos de segador ou malhador eram substituídos por calça de cotim e camisa de riscado.
O chapéu era de palha e os tamancos, ou bota cardada completavam-no. No Inverno a calça era de serrobeco.
A mulher usava saia de riscado, normalmente de cor escura, e blusa do mesmo tipo de tecido. Um avental longo, chapéu de palha, lenço e socas completavam este fato de trabalho.
No Inverno o xaile era elemento indispensável nesta terra fria. O traje domingueiro no homem, era constituído por um fato de riscas ou liso, sapato ou bota de cordão e chapéu de aba larga.
As mulheres usavam saias bem rodadas e longas com barra de veludo ou cetim, por vezes bordadas. Usavam colete a condizer e normalmente blusa branca, lenço lavrado e chinela.
O traje senhorial para o homem era formado por calça de risca fina acompanhada de labita ou fraque, camisa branca, cartola ou chapéu de côco e sapato de cordão. As senhoras por sua vez vestiam luxuosos fatos de veludo ou brocado, as saias eram igualmente longas, usando bolsinha de mão a condizer, sapato de cordão ou fivelas e sombrinha. Estes trajes reportam-nos ao séc. XIX.
O Professor Virgílio Tavares escreveu um livro sobre o historial do Rancho Folclórico de São Tiago, fundado e mantido até hoje pelo ilustre Mirandelense Augusto Carolino Carvalho.
Contactos
Rancho Folclórico de São Tiago
Telefone: 278 262 398 / Telemóvel: 966 739 990
Email: rfstiago@hotmail.com
Site: http://rfolstiago.no.sapo.pt/
Banda de Musica
1º de Maio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas Mirandelenses
A Associação de Socorros Mútuos dos Artistas Mirandelenses cumpriu o seu centenário no dia 1 de Maio de 2001. Há cem anos atrás reuniu pela primeira vez a Comissão Administrativa em casa de José Teixeira Mendes Bragança. Ao longo da história teve uma função assistencial, recreativo-cultural e social. Tem sede social na Rua Alexandre Herculano num edifício de grande beleza arquitectónica.
O Professor Virgílio Tavares escreveu uma obra obre a Associação de grande qualidade, publicada pela Editora Cidade Berço.
Actualmente o seu ex-libris é a sua Banda de Música. A integração numa banda filarmónica além de ser uma forma de ocupar o tempo, é uma oportunidade de enriquecimento cultural, de afirmação de uma localidade e de um nome. As bandas são escolas de aprendizagem de música mas também de vida. As bandas permitem cultivar o espírito de grupo, a solidariedade, o sentimento de pertença a uma comunidade e a amizade. Consolidam, outrossim, valores e princípios essenciais na construção da personalidade humana, tais como a disciplina, a responsabilidade, o espírito de sacrifício, a entrega, a insistência e a perseverança.
As bandas fazem parte do nosso imaginário e do nosso património cultural e espiritual. Não há procissão que se preze se não tiver uma Banda e não há festa grande sem Banda Filarmónica. Como é delicioso ver a banda passar e tocar com os músicos aprumados e bem vestidos nas suas fardas, coordenados por um maestro a quem todos obedecem. Nas Festas populares, sempre que há mais do que uma banda, é comum organizar-se um despique no coreto, no largo da aldeia ou no centro da localidade, em que cada uma procura tocar melhor que as outras.
No concelho de Mirandela existe apenas a Banda 1º de Maio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas Mirandelenses.
No site http://www.bandasfilarmonicas.com/ existe informação muito relevante sobre as bandas filarmónicas do país inteiro, nomeadamente uma descrição exaustiva dos instrumentos usuais numa banda filarmónica.
Contacto
Rua Alexandre Herculano
5370 - 299 Mirandela
Gaitas de Foles
http://popularis2.com.sapo.pt/transmontana1.htm
A Gaita-de-foles de Trás-os-Montes (também chamada de "Transmontana" ou "Mirandesa") é tradicionalmente de construção artesanal e partilha semelhanças morfológicas com as gaita-de-foles de Sanabria, Aliste ou Zamora, comarcas espanholas fronteiriças, mas possui características muito próprias: possui um ponteiro de furação larga, com digitação aberta, preso no pescoço de um fole de cabrito, assim como um ronco de grandes dimensões, preso na pata direita, e um assoprete, preso na pata esquerda. A sua tonalidade pode oscilar entre Si, Si bemol e Lá, dependendo dos artesãos, e exibe uma escala próxima das usadas na música da região, sobretudo na música de flauta pastoril ("Fraita", em Mirandês) e vocal.
A sua escala pode estar afinada no modo Eólio (escala diatónica menor natural) e é possível encontrar exemplares afinados com uma 3ª neutra e em várias ocasiões, com o 6º e 7º graus neutros, com quase 1/4 de tom abaixo - o que ao ouvido humano dá a sensação de escala menor, com uma sub tónica em vez de sensível e de 3º e 6º graus baixos.
As práticas musicais e os próprios materiais de construção dos instrumentos estão profundamente envolvidos no contexto agro-pastoril desta região.
As técnicas de construção deste instrumento eram, até há bem pouco tempo, artesanais, com os artesãos (eles próprios gaiteiros, por vezes) a tornear as peças em tornos de pedal, perfurando-as com brocas e ferros fabricados para o efeito por ferreiros, ou adaptando para essa função material já existente.
Esse era também o modo como em toda a Europa se faziam as diferentes gaita-de-foles, antes da introdução de técnicas industriais.
Hoje em dia começam a surgir alguns artesãos que procuram construir gaitas transmontanas com as ferramentas industriais hoje disponíveis: tornos eléctricos, ferramentas de precisão, ferros de furação em aço temperado, etc.
Isso tem levado ao surgimento de gaitas deste modelo que têm características mais estáveis e precisas que os modelos mais antigos - inclusive, já permite que várias gaitas transmontanas afinem e toquem em conjunto, mantendo as suas características tímbricas e musicais únicas.
A Gaita-de-foles na foto acima é uma réplica de modelos transmontanos construída na oficina da Associação Gaita de Foles, com técnicas de construção modernas e uma escala que se aproxima do padrão habitual em Trás-os-Montes, particularmente em Miranda do Douro. Foi construída em madeira de buxo e possui um fole de cabrito inteiro. As palhetas simples e duplas são de cana ("Arundo Donax").
Ezequiel dos Santos
O Gaiteiro de Vale Martinho
http://www.gaitadefoles.pt/vidas/ezequielsantos.htm
Ezequiel dos Santos, faz parte de toda uma tradição regional e, como tal, não pode nem deve ser considerado, como expressão de tradições locais e limitadas. É no contexto transmontano que deve ser enquadrada a sua arte de soprar na gaita-de-foles, instrumento que constitui um prolongamento essencial da sua vida. Com efeito, Ezequiel dos Santos nasceu e vive numa região que, ao longo dos tempos, foi um verdadeiro cruzamento intercultural.
Ezequiel dos Santos foi registado ao 17 de Outubro de 1927. Desconhece “como muitos dos que por aqui nasceram” a data exacta do seu nascimento. Mas garante que foi ali, em Vale Martinho.
Septuagenário de boa fibra transmontana, continua a dedicar-se às tarefas agrícolas, na companhia de sua mulher, alardeando “mais fôlego que um "macho". Porque se assim não fosse - perguntou – “como é que podia ser gaiteiro?”
Autodidacta na aprendizagem da gaita de foles, Ezequiel dos Santos evoca, a cada passo, a figura - mítica e venerada! - de um tal José Benedito, gaiteiro que foi em Vale dos Prados, aldeia não muito distante de Vale Martinho.
“Falecido há mais de trinta anos, José Benedito foi o melhor gaiteiro que eu conheci em toda a minha vida e foi com ele que eu aprendi tudo o que sei. Vendo-o tocar, como mandavam as regras, porque gaiteiro que se preze não ensina aos outros os segredos da sua arte.” Ezequiel dos Santos nunca enjeitou desafios ou despiques e orgulha-se de já ter calado muitos tocadores de clarinete - um "inimigo" da gaita de foles! - soprando no seu velho instrumento. Esta, que exibiu no decurso do nosso primeiro encontro, era uma espécie híbrida traça galega, muito estragada e com abundantes quantidades de adesivo castanho a ligar os vários componentes do bordão: “Já tocou muito... É muito velhinha mas olhe que ainda não vi melhor por aí. Mas por via do cansaço lá foi comprando uma nova, em Vigo, “com um fole que não perde ar.”
Actualmente, Ezequiel dos Santos quase só faz as festas das aldeias mais pequenas da região ou com menos posses. São toques de alvorada e de procissão, assim como reportório de baile e modas:
“Quando não têm dinheiro para 'Justar" bandas de música, eles vêm 'Justar" comigo as gaitadas...”.
A formação instrumental varia de acordo com os fundos recolhidos e disponíveis; na sua máxima força pode integrar dois bombos, duas caixas de guerra e pratos. Tudo instrumental de sua pertença, como não podia deixar de ser para poder controlar o grupo. Mas os tocadores contratados esgotam-lhe a paciência durante os ensaios e durante a "função".
O trabalho já não abunda e depois do Verão as festas escasseiam:
“No Natal e nos Reis é que aparece alguma coisa para fazer. Nos Reis eu vou muitas vezes tocar a Vale Salgueiro: toco no dia 5, por volta das cinco da tarde e no dia a seguir faço as alvoradas, a missa e vou na procissão de Santo Estêvão. “
Com percussão reduzida porque a função é religiosa. Nada de arraial. Em princípios de Setembro de 1996, Ezequiel dos Santos contava ir fazer de novo a festa em Vilarinho das Azenhas, terra situada lá para os lados do Cachão: “Aquilo é das 8 da manhã às 6 da tarde. Mas só vou se me puserem carro à porta. Como é que eu posso levar tudo para lá?”
Não levou. Acabaram por ser os de Sanfins do Douro a fazer a festa.
Homem de muitos suores nos campos duros e pedregosos de Vale Martinho, Ezequiel dos Santos fala com toda a desenvoltura, como todo o gaiteiro que se preza. Homem vivido e de histórias sempre artilhadas, orgulha-se de nas suas andanças africanas ter uma vez atrasado um voo porque começou a tocar gaita-de-foles e toda a gente o ficou a ouvir. Mas também não se esquece do verdadeiro pânico de um organizador de uma festa em pleno País Basco, ao qual afiançou que iria tocar o "Viva Espanha", assim como a ovação que recebeu no campo do Mirandela quando este jogou contra o Boavista para a Taça de Portugal e ele se encontrava nas bancadas a tocar para animar as hostes locais.
Ezequiel dos Santos apresenta um reportório que testemunha de modo assaz expressivo a transição entre as composições mais antigas, em claras vias de extinção, e as chamadas modas mais recentes. Sem esquecer as composições de carácter religioso, dignas de toda a nossa atenção e registo. Exibindo um razoável domínio das apoiaturas, Ezequiel dos Santos não tem quaisquer conhecimentos musicais teóricos, tocando o "compasso" de ouvido (como de ouvido aprendeu com o gaiteiro de Vale de Prados, José Benedito).
Ezequiel dos Santos dispõe de um numeroso conjunto de ponteiras:“ Destas já não sou capaz de fazer: falta-me a vista. Tenho de as mandar vir de Espanha, porque não posso ficar mal.”
Mas as do bordão, essas continuam a ser confeccionadas por si, quer com canas que recolhe nos canaviais do Tuela, quer com hastes de sabugueiro (um bom feixe de esguias varas bem secas encontrava-se pendurado no alpendre). Para levantar a lingueta, Ezequiel dos Santos usa a vulgar linha preta de costureira, colocando, por vezes, um pouco de fita-cola para evitar o seu fecho com a humidade excessiva. O extremo é tapado com cortiça.
Se na gaita antiga os problemas de afinação lhe causam indisfarçada impaciência, com a nova tudo é diferente, embora ainda se encontre em fase de adaptação. No que se refere às ponteiras, Ezequiel dos Santos mostrou-nos dois exemplares, muito antigos, que conserva como reserva. Uma das ponteiras, feita de buxo, “é coisa rija, para nunca mais acabar.”.
No entanto, são já claramente peças de museu, pedaços sobreviventes de uma memória que se vai desvanecendo:
Quando eu morrer isto não vai servir para ninguém. Ninguém quer mais continuar com esta tradição!...”
Texto e Fotos: Excerto do livrete do CD "Ezequiel dos Santos- Gaiteiro de Vale Martinho, Mirandela" - Colecção "Gaiteiros Tradicionais" nº1 - Mário Correia / Sons da Terra